O último doente já saíra há uma boa meia-hora quando o Dr. Jorge V. se levantou, vestiu o sobretudo e abandonou o consultório. Durante esse tempo, encolhido na cadeira, tentou combater sem grande êxito a infinita preguiça de se levantar, sair e ir à procura da música que queria.
Pensa nos pacientes que recebeu, mas mistura-os com muitas outras coisas. Os pensamentos desordenados são improdutivos, mas este homem da ciência tem sentido uma crescente dificuldade em ordená-los. Na verdade, pode-se afirmar que ele pensa, sobretudo, no que foi pensando enquanto recebia esses pacientes, de forma que, agora, já não os recorda, a eles, com a mesma clareza com que se recorda a si, durante essas consultas. Sabe as músicas que identificou e as que falhou; sabe que sentiu uma certa comunhão com o paciente das onze horas; sabe que no final da manhã as árvores que rodeiam o hospital projectaram umas sombras curiosas no rosto de uma mulher.
Sabe que, mais tarde, há-de estacionar em frente à sua casa e demorar outra meia-hora para sair.
Lembra-se, então, de fazer o que não sabe: telefonar à mulher a dar uma desculpa para regressar mais tarde a casa.
Dirige-se para o centro da cidade, sem um destino definido.
Como saber para onde vai, se nem sabe onde está? O Dr. Jorge V. é um homem que acredita que Deus seja um jogador de dados. Não se importa. Essa ideia, que o assustou bastante no início, dá-lhe agora um imenso alívio.
(cont.)
O Dr. Jorge V. é um homem cansado. Gostava de o poder descrever melhor, mas corria o risco de mentir. Ele num momento é uma coisa, no seguinte já é outra, estaria permanentemente no limiar da falha: quando o encontrasse, ele já não era o que eu tinha conseguido reter.
Enquanto ele observa a mulher que à sua frente olha fixamente o lápis sobre a mesa, nós observamo-lo a ele. Este ciclo de predadores e presas já o interessou de forma muito apaixonada; agora cansa-o como as demais coisas.
Foi assim com a música. Quem o tenha conhecido há vinte anos não acreditará que ele agora ouve música comercial na rádio e quer conhecer os êxitos do momento para vencer competições contra si próprio.
Foi assim também com a medicina. O tempo em que andava obstinadamente às voltas no seu quarto, entusiasmado com a resolução de um problema, não parece seu e essas voltas não pertencem ao passado do seu corpo.
O Dr. V. diz qualquer coisa à sua paciente mas fá-lo muito baixo. Faz-lhe uma pergunta.
Pensa, entretanto, que ela é bonita e que, estranhamente, não se sente atraído por ela.
Adivinha o início da música seguinte e pensa que aquela música nunca poderia ser cantada por esta mulher. E pensa, novamente, nas realidades paralelas. Ele, a paciente e a cantora, alinhados – três realidades que nunca se tocam por mais que se prolonguem no infinito. A matemática aplica-se à música, à medicina, mas não ao mundo interior, propõe, intimamente. Ele, a paciente e a cantora, a girar sobre si mesmos num espaço negro e silencioso. Se eles trocarem partes do corpo, entre si, enquanto giram nesse imenso céu nocturno - ele com uma perna da paciente, com um braço da cantora - continuam a ser quem são: médico, paciente e cantora? Se ele tomar o rosto da paciente, continua a ser o Dr. V. ou é uma mulher bonita? E se a paciente receber a voz da cantora, é a cantora?
(cont.)
Por alguns segundos, o Dr. V. não ouve a mulher que tem à sua frente, mas a música que está a tocar no rádio que há anos ocupa a última prateleira de uma pequena mesa ao lado da sua secretária. Já é a segunda música, nesta manhã, que ele não consegue identificar durante os primeiros segundos e isso desagrada-lhe a ponto de o fazer franzir muito ligeiramente a sobrancelha.
É preciso perceber que o rádio está ali apenas para isso, para o Dr. V. exercitar a sua extraordinária capacidade de reconhecer uma música apenas pelos primeiros acordes. Aos pacientes, ouve-os no tempo restante, que é quase todo, mas é absolutamente necessário ouvir o início das músicas.
A mulher, porém, não se apercebe da contrariedade que fechou levemente a expressão do médico, absorvida que está no seu próprio mundo interior.
Dir-se-ia que os seus mundos interiores não se tocam, considera, vagarosamente, o Dr. V. Ela pensa obsessivamente em qualquer coisa que lhe aconteceu naquela manhã, mas que não consegue explicar; ele num CD que tem de procurar mal saia do consultório. Poderiam ficar toda a manhã ali, naquela situação, que os seus mundos nunca se tocariam, seriam realidades paralelas que só um puro acaso poderia fazer coincidir. Que tipo de acaso, ele não sabe. Poderiam descobrir que são, afinal, vizinhos, quando ele registasse a morada dela na receita, essa é uma hipótese. A partir dessa coincidência, poderiam começar a falar de si próprios, o que os fez ir morar para aquela zona da cidade ou qual o café que mais frequentam.
Assim que se apercebe do rumo dos seus pensamentos, o Dr. V. recolhe-os rapidamente e fixa, com um ar bondoso, a mulher que tem à sua frente. Este homem sabe há muito tempo que não há qualquer vantagem nesse encontro de mundos interiores, que caminham, como todos os outros, para a morte.
(cont.)
O médico tem cerca de 50 anos, é alto e tem olhos azuis. No consultório há um rádio, já com alguns anos, que apanho no intervalo de duas músicas, de forma que, quando entro, não percebo imediatamente se foi o médico que disse alguma coisa, se foi o apresentador do programa. Ele está de cabeça baixa, sobre uns papéis que preenche diligentemente, o médico. Mal me olha.
«Parece-me um caso típico de focalização interna, a tender para o omnisciente. Consulte um bom narratologista.» – disse o sangue azul e eu não podia desperdiçar uma tirada destas.
Agora já eu estou no meu carro e dirijo-me para o hospital. Continuo obcecada com a recordação meticulosa de tudo o que fiz ontem. Talvez devesse registar aquilo de que me vou lembrando, os médicos gostam destas coisas e tratam-nos mal quando somos pouco rigorosos.
Antes de me deitar e ler a Egoísta, o que fiz? Não saí de casa - eu saio pouco, aborreço-me quase sempre, não vale a pena. Também não esteve lá ninguém, era dia de semana. Não consigo ver com clareza o que fiz depois do jantar, mas subitamente recordo-me de uma história que ouvi, de manhã, e que pode ter interesse para o caso porque me impressionou muitíssimo. Foi a história de um homem de 83 anos que foi operado ao único olho de que via e, na recuperação, entregue aos cuidados da mulher, ficou cego porque ela, ao colocar-lhe as gotas, desequilibrou-se e perfurou-lhe essa vista com o bico do frasco do medicamento. É caso para dizer, não querendo de forma alguma brincar com o caso, que a história ficou a perfurar-me os pensamentos ao longo do dia e, numa das vezes em que fui à casa-de-banho, no trabalho, vi esse velho Tirésias por trás de mim, a caminhar ao meu encontro, com o braço estendido adiante do corpo, quase tocando as minhas costas. Não trazia as suas terríveis profecias, aproximava-se com um ar curioso e apenas me perguntava pela mulher, que fugira de casa no dia em que o cegou. O mais provável é que eu tenha imaginado isto enquanto dormia, embora me pareça tão real como o almoço no refeitório e as apostas relativamente ao vencedor das presidenciais americanas.
Estou no hospital e não faço a mínima ideia de onde me devo dirigir. Neurologia? Psiquiatria? Observo a folha que me pedem para preencher e onde já estão quase todos os meus dados. Felizmente, penso, ninguém se apercebe da minha aflição. Motivo da vinda às urgências? Indisposição severa, acabo por assinalar. O severa parece-me adequado.
[Mais, brevemente.]
Esse homem, cujo pesadelo era desencontrar-se de Deus por minutos, não me saiu da cabeça - recordo-me perfeitamente. Aparecia-me com a cara do Gonçalo M. Tavares, os cabelos negros revoltos numa loucura de lucidez forçada, mas, aí, já eu estaria provavelmente a dormir, ou a dormir o homem que agora era o escritor e daí os cabelos revoltos. Dormia meio dobrado, ele, sobre uma tábua de passar a ferro que ficava entalada num corredor. Houve um momento - juro - em que o homem tinha a estatura de uma criança e dava pequenos saltos perto de uma lareira, e Deus era o Pai Natal que se atrasava para uma redenção de embrulhos, mas aí já eu dormia, certamente.
Tentei ver-me dormir para perceber se nessa altura já aquilo tinha acontecido e vi-me deitada, perto de mim, de olhos fechados, a boca um pouco torcida mas sem expressão. Vi-me mexer-me, ouvi-me murmurar, vi-me dobrada no equilíbrio frágil da tábua, vi tudo isso e tudo vos conto, mas continuo sem saber se nessa altura já o meu rosto se tinha desencontrado de mim.
[a continuar]