Já não me recordo bem do que fiz a seguir, lembro-me de molhar a cara, desesperada, de a massajar, de me deitar outra vez, de tomar um comprimido para me acalmar, de ligar a televisão e ouvir uma piada. Lembro-me distintamente da piada e lembro-me de instintivamente procurar o meu rosto no reflexo do vidro da porta da cozinha e de me ver sorrir, mas de um modo muito, muito vago, que não correspondia de forma nenhuma ao enorme sorriso que eu rasgava dentro da minha cabeça, forçado, alarve, à procura de uma expressão facial à altura.
Tenho a certeza de que peguei no telefone para ligar a alguém, mas lembro-me, claramente, de também pensar que não podia ligar a ninguém e dizer o que se estava a passar. Olha, estou a rir-me, estou desesperada, estou a gritar contigo ao telefone neste momento, mas tudo no meu interior, porque no espelho vejo-me calma e sossegada como ali a minha máquina de café antes de a ligar e começar o ronronar da água a ferver. De resto, foi neste momento que me ocorreu verificar o que se passava com a minha voz, para descobrir que também nela havia, hoje, uma tranquilidade falsa. Agudos e graves controlados, uma modulação leve, falseada, e quase elegante.
Comecei a fazer um esforço para me lembrar de como é que tinha dormido, se tinha demorado para adormecer, em que é que tinha pensado, se tinha sonhado. Certo foi que li, antes de adormecer, o conto do Gonçalo M. Tavares, "Perdido em Buenos Aires", publicado na última Egoísta. Recordo-me que houve uma passagem que ficou a trabalhar longamente na minha cabeça: «Era um homem de quem se dizia não dormir mais do que duas horas por dia. Estas insónias não eram provocadas por nenhum distúrbio biológico ou psicológico, eram pura consequência da vontade. O homem queria estar atento ao possível aparecimento de Deus. Não queria estar a dormir.»
[A contar mais resto... brevemente.]