Para desenjoar de taxistas vs. uber, eis a polémica escritores-a-sério vs. escritores-de-letras-de-canções. O que é que falta aos segundos? Alvará profissional de escritores? Licença de porte de escrita?
Sim, também adoro o Philip Roth e, quanto à A mancha humana, vénia! vénia! E, sim, entre os segundos, podia ter sido o Cohen... mas, bom, foi o Dylan, viva o Dylan!
Quando eu for grande quero ser
Um bichinho pequenino
P'ra me poder aquecer
Na mão de qualquer menino
Quando eu for grande quero ser
Mais pequeno que uma noz
P'ra tudo o que eu sou caber
Na mão de qualquer de vós
Quando eu for grande quero ser
Uma laje de granito
Tudo em mim se pode erguer
Quando me pisam não grito
Quando eu for grande quero ser
Uma pedra do asfalto
O que lá estou a fazer
Só se nota quando falto
Quando eu for grande quero ser
Ponte de uma a outra margem
Para unir sem escolher
E servir só de passagem
Quando eu for grande quero ser
Como o rio dessa ponte
Nunca parar de correr
Sem nunca esquecer a fonte
Quando eu for grande quero ser
Um bichinho pequenino
Quando eu for grande quero ser
Mais pequeno que uma noz
Quando eu for grande quero ser
Uma laje de granito
Quando eu for grande quero ser
Uma pedra do asfalto
Quando eu for grande...
Quando eu for grande...
Quando eu for grande quero ter
O tamanho que não tenho
P'ra nunca deixar de ser
Do meu exacto tamanho
José Mário Branco, "Quando eu for grande (carta aos meus netos)"
Alisa Freyndlikh em Stalker (1979)
Amor, a partir de Tarkovski
O sonho dele é o meu, disse-me
apontando as paredes com rios
dentro – ou seriam mares
porque respirávamos a salgada cicatriz
da ferrugem nas portas arrebentadas?
As paredes levadas pela correnteza,
o teto desabando enquanto dormia
para acordar soterrada, gritando,
gritando grávida de um pesadelo
em que não éramos nascidos.
O inverno fratura suavemente os ossos.
Na cama os lençóis enregelados.
A aragem do vazio na carne.
Os cachorros latindo enquanto uivo
metálico de uma locomotiva naufragada.
Por entre os escombros, erguia
para o luar os olhos esfacelados, para
a luminosa e nula aura de insônia –
a fria dor do mármore feito carne
e o delírio do mármore feito ardor.
'Perdi a memória do cartão', ouvi há pouco.
É por isso que as melhores memórias se guardam nos olhos, nos ouvidos, na pele. Sobretudo na pele.
(Espécie de conselho à pequenada.)
Um maravilhoso e acústico e não sei se já disse maravilhoso Jack White no Jimmy Fallon há três dias.
Foto: Clara Umbra
Alívio: Dois dias de setembro foram suficientes para varrer do feed do facebook frases com a chalaça 'agosto / a gosto'.
P.S. Não, não a li escrita por amigos meus, tudo gente de bom gosto.
Há buracos na Segurança Social, buracos em instituições bancárias, buracos em empresas, buracos em partidos políticos... De quem é a culpa? Do ozono. Foi o primeiro a lembrar-se de ter um.
(Vistoso e mediático, vá!)
Tenho tanto em comum com a Caixa Geral de Depósitos: tal como ela preciso de uma recapitalização e tal como ela chumbo em testes de stress (se mos fizerem).
Das noites
Quando pela noite chegas dissolvem-se as trevas
e eu partir não quero, porque esta é a noite
que ilumina o dia, canto do silêncio, eco subtil
no discurso do mundo. Quando pela noite chegas
é meu o teu amor, e a morte tarde doce como mel.
Ana Marques Gastão
Kar Wai Wong (In the mood for love, 2000)
Segredo
Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça
nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa
Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço
Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar
nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar
Maria Teresa Horta
Foto Clara Umbra
O Amor, Meu Amor
Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.
Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.
E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.
E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.
Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.
Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.
E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.
E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.
Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.
Mia Couto
Foto Clara Umbra
O que tentam dizer as árvores
No seu silêncio lento e nos seus vagos rumores,
o sentido que têm no lugar onde estão,
a reverência, a ressonância, a transparência,
e os acentos claros e sombrios de uma frase aérea.
E as sombras e as folhas são a inocência de uma ideia
que entre a água e o espaço se tornou uma leve
integridade.
Sob o mágico sopro da luz são barcos transparentes.
Não sei se é o ar se é o sangue que brota dos seus
ramos.
Ouço a espuma finíssima das suas gargantas verdes.
Não estou, nunca estarei longe desta água pura
e destas lâmpadas antigas de obscuras ilhas.
Que pura serenidade da memória, que horizontes
em torno do poço silencioso! É um canto num sono
e o vento e a luz são o hálito de uma criança
que sobre um ramo de árvore abraça o mundo.
António Ramos Rosa, "Cada árvore é um ser para ser em nós".
(foto Clara Umbra)
“O mundo é uma representação minha.” (A. Schopenhauer)
"Vermos o que está à frente do nosso nariz implica uma luta constante." (G. Orwell)
*José Saramago
(foto Clara Umbra)
Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti -------------------
----------------------------- até que a dor alegre recomece.
Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser a pele da minha pele?
Cintilação de luas
assim que te desnudas
às escuras
Diante do teu ventre
como não dizer “sempre”
novamente.
Ó lâmina e bainha
de outra espada ainda
Tua língua
Ruge. Reprende. Arrasa
Desde que sempre o faças
com as asas
Vem dos arcanos de outro tempo
ou dos anéis de outra galáxia
esta espessura transparente
que só na cama as almas ganham
David Mourão Ferreira, Pequenos poemas
É capaz de ser o melhor gif de sempre, é um western spaghetti com gato em coda, sou eu em countdown.
Eric Cahan (The Lightning Field, NM ; Sunset 7:52pm)
Deus é um boomerang
e eu sou a sua filha pródiga
Adília Lopes
(foto Clara Umbra)
Imagino este momento à meia-noite na floresta:
Outras coisas vivem
Para além da solidão do relógio
E desta página em branco onde os meus dedos se movem.
Pela janela não vejo estrelas:
Algo mais próximo
Mas fundo na escuridão
Vai entrando na solidão:
Frio e delicado como a escura neve,
Um nariz de raposa aflora um caule, uma folha:
Dois olhos fazem um movimento breve
E de novo breve, breve, breve
Deixa claras impressões na neve,
Entre as árvores. Hesitante,
Uma sombra avança devagar,
Acoitada em troncos e buracos,
A sombra de um corpo que ousa revelar-se
Através das clareiras, um olho,
Uma crescente verdura escurecente,
Brilhantemente, concentradamente
Ocupada a tratar da vida
Até que, com um súbito e intenso odor a raposa,
Entra no buraco negro da cabeça.
A janela ainda está sem estrelas; tiquetaque, faz o relógio,
A página está impressa.
Ted Hughes, The Hawk in the Rain
Música: Filho da Mãe; Letra: André Henriques; interpretação: Cristina Branco.
(foto Clara Umbra)
"Existimos se, e só se, formos livres de fazer coisas sem um objetivo visível, sem justificação alguma, e, acima de tudo, fora da ditadura da narrativa de outra pessoa."
Nassim Nicholas Taleb, A Cama de Procusto: Aforismos Filosóficos e Práticos
Confiança
O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura…
E que a doçura
Que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova…
Miguel Torga
Cate Blanchet, por Annie Leibovitz.
Efeito é-fim-de-semana-prolongado
(foto Clara Umbra)
'A procrastinação é a alma a revoltar-se contra o aprisionamento.'
Nassim Nicholas Taleb, A cama de Procusto.
(Tão bom, sinto-me bem menos culpada.)
Mulheres protestam contra o uso forçado do hijab (véu muçulmano) no Irão, logo depois da revolução de 1979.
As séries que, logo na primeira temporada, têm muitas personagens stressam-me.
Sou o tipo de pessoa que leu o Cem anos de solidão a registar as gerações sucessivas de Aurelianos e Arcadios num papelinho para se orientar.
Changes dos Black Sabbath agora por Charles Bradley.
Vídeo muito expressivo. Tudo muito bom.
No Amor nada se perde e tudo se cria, embora tudo se transforme.
Ele nasceu com dois cérebros, ela com dois corações. Um sempre a bombar, outro sempre a bombear.
Imagem: Lottico no Instagram
Blonde, by Guesch Patti (BSO de Pillow Book, de Peter Greenaway)
Morreremos às mãos das estranhas linguagens que inventamos.
Estranhos, morreremos nas entranhas que inventamos com linguagens.
Linguajando, estranhamos que morramos pelas mãos que inventamos.
Inventamos mãos para depois morrermos pelas linguagens sem entranhas.
Estaremos cada vez mais pessoanos mas sem o génio?
Devia ser uma hora da noite
ou uma e meia.
A um canto da taberna,
atrás da divisória de madeira.
Só nós ainda na deserta sala
que um candeeiro mal iluminava.
O criado, obrigado a esperar, adormecera à porta.
Ninguém nos teria visto. Mas, embora,
estávamos os dois tão excitados,
que nada nos faria ter prudência.
A roupa se entreabria... – muito pouca
na ardência de um divino mês de Julho.
Prazer da carne,
por entre a roupa;
o rápido surgir da carne – e a imagem dela
cruzou vinte e seis anos, até vir
a estes versos, para ficar.
Salimos del amor
como de una catástrofe aérea
Habíamos perdido la ropa
los papeles
a mí me faltaba un diente
y a ti la noción del tiempo
Era un año largo como un siglo
o un siglo corto como un día?
Por los muebles
por la casa
despojos rotos:
vasos fotos libros deshojados
Éramos los sobrevivientes
de un derrumbe
de un volcán
de las aguas arrebatadas
y nos despedimos con la vaga sensación
de haber sobrevivido
aunque no sabíamos para qué.
Cristina Peri Rossi
Babel Bárbara
(1991)
O João diz-me que googlou "como saber se estamos numa revolução"... e nada.
As traças não vão à bola com a naftalina.
Astrónomos anunciaram ontem a entrada, pela primeira vez, na Via Láctea, de um planeta imigrante, vindo de outra galáxia. A entrada do HIP 13044b vem mostrar a importância de que os SEF portugueses passem a tutelar as fronteiras intergalácticas com o mesmo fervor com que controlam as portuguesas no âmbito do plano de segurança para a cimeira da NATO.
Quanto mais jogos Paulo Bento ganha, mais Carlos Queiroz precisa de um dos quatro blindados Cougar que vão chegar à PSP e que têm protecção balística, protecção contra engenhos explosivos improvisados e atingem uma velocidade máxima de 120 quilómetros/hora.
gritava o povo enfurecido, enquanto (logo depois do golpe de estado) degolava o líder deposto.
*José Saramago
A sra. J. chamou a sua família para jantar, mas ninguém apareceu. Abriu, então, o seu PC, perdão, o seu Mac, na cozinha: entrou na caixa de comentários do blogue do marido e comentou "Vem jantar!"; abriu o Facebook e escreveu no mural do filho "Vem jantar!"; abriu o Messenger, enviou à filha um toque e a mensagem "Vem jantar!". Quando, dois minutos depois, todos se sentaram, disse "Descarreguem o souflé; a sobremesa já não é muita, façam copy paste".
Ainda em relação ao cânone, e pensando por exemplo em Gabriel García Marquez, André Bernardes escreveu pouco: dois dedos de livros (isto em unidades de medida de conversa). Ao contrário do mestre colombiano, o fantástico pouco assoma na sua obra: prodígios só mesmo os humanos.
*Dra. Temperance Brennan
E em relação ao cânone? Podemos afirmar que André Bernardes não foi um Hemingway: ninguém se atreve a adivinhar-lhe uma biografia através das suas obras, nem ninguém seria capaz de lhe supor uma obra partindo das parcas informações biográficas. Uma semelhança relevante: ambos se suicidaram, embora no caso do autor português esta informação ainda não tenha sido confirmada. Uma diferença não menos relevante: da leitura dum romance de André Bernardes sai-se relativamente sóbrio.
Houve, é certo, em uma ou duas revistas literárias relativamente desconhecidas, tentativas de ler, no romance Sob as pedras da calçada, a praia, pormenores biográficos, mas como um desses artigos colocava A. B. nas revoltas estudantis de Paris e o outro colocava-o na Universidade de Berkeley, nenhuma das hipóteses foi levada a sério. Além disso, esse quarto romance desenrola-se durante a Guerra da Crimeia e a expressão sob as pedras da calçada, a praia parece referir-se, simplesmente, à pequena localidade, central na obra, cujas frágeis habitações tinham sido construídas sobre a areia de uma das inúmeras baías da Crimeia. Entretanto, na blogosfera, corre que A. B. nunca esteve nem em Paris, nem na Califórnia, nem na Crimeia.
Sobre André Bernardes se escreveu, por estes dias, que há poucos dados biográficos porque o autor sempre procurou proteger a sua privacidade, mas a questão é que, aparentemente, ele não tinha biografia, se exceptuarmos a casa caiada, os coentros e os medicamentos (nos últimos anos da sua vida); todos juntos não servem para construir uma tábua que se veja – uma de acontecimentos irregulares e notáveis.
Morreu o escritor André Bernardes, que também publicou livros – em número consideravelmente menor – como Domingos Rebelo, João da Silveira e Josefa Gresbante. Nos meses que antecederam a sua morte foram concluídas traduções da sua obra em onze línguas diferentes, uma dissertação de mestrado sobre a predilecção do escritor – na criação dos seus pseudónimos – por nomes de pintores portugueses do séc. XVII e duas teses de doutoramento: uma sobre a presença da memória nas primeiras obras e outra sobre a identidade nacional nos últimos romances publicados.
André Bernardes, que na verdade se chamava António Reis, passou os seus últimos meses de vida a caiar uma pequena casa que tinha à beira-mar, a tentar que os coentros que insistia em semear no seu quintal vingassem, a escrever o seu 18.º romance e a iniciar um novo tratamento para artroses, que incluía ibuprofeno, diclofenac, sulfato de glucosamina (na dose diária de 1,5 gramas) e hialuronato de sódio (em pequenas doses difíceis de quantificar).
Desapareceu da minha conta Dropbox um concerto n.º 3. Na última vez em que foi visto vestia um fato azul com finas riscas brancas, circulava a grande velocidade e era conduzido por Sequeira Costa. A quem o encontrar pede-se o favor de mo devolver. Sofre de perturbações musicais.
Está uma tarde muito quente. Talvez fechem as casas, as encham de água e as transformem em aquários gigantes que se vejam do céu. Era bonito! Sentava-me, com gosto, no telhado da minha, e passava os dias a dar de comer aos peixinhos. Também podia oxigenar-lhes a água, agitando-a com os pés.
Quanto a dias, estamos assim: a passá-los. E passamo-los, e passamo-los e passamo-los.
O homem vai a todos os espectáculos do teatro da sua cidade e em todos, sem excepção – musicais, teatrais, de dança... –, adormece. Cabeça ligeiramente tombada – com mais frequência para a frente do que para trás – assim permanece grande parte da noite.
Ouvir os outros, mesmo quando se repetem, é uma bênção, sempre é uma variação das nossas repetições.
e o meu amigo sangue azul disse: agora é que deus se vai vingar...
O homem passara anos a coleccionar chaves num quarto onde ninguém podia entrar. Quando morreu e a sua viúva, por fim, entrou no aposento, encontrou, surpresa, uma chave apenas. O espírito deste coleccionador não era o de juntar mas o de se autocorrigir. Uma nova chave era adquirida graças às propriedades a, b e c e, assim, substituía a anterior que só tinha as propriedades a e b e que, por sua vez, já substituíra a chave com a única propriedade a (isto para reconstituir o início da colecção).
Querer compreender a natureza humana é como querer medir o cosmos com um sistema de medida como os metros ou as milhas.
A surpresa precisa de espaço, se não houver espaço, ela não entra. É volumosa, sonora e gosta de protagonismo. Correcto: é de uma família oposta à da memória. Quando uma memória vem na sua direcção, a surpresa muda de passeio. Como é mais rápida, fá-lo antes que a memória levante a cabeça e a veja.
O peregrino – ou outro homem que viaje – vai à procura da surpresa, mas só a encontra se disser não era nada disto que eu esperava encontrar.
O pensamento que espera é da família (amaldiçoada) das expectativas e o pensamento que encontra pertence à família (feliz) dos reconhecimentos. Um sinónimo de expectar é distrair-se e um de reconhecer é encontrar-se.
São muitas as razões que te levam a partir. O teu corpo vai ser uma extensão do teu pensamento e há-de fazer o que pensares, sem querer saber a razão. Se (numa brincadeira de crianças) perguntares quem nasceu primeiro – o corpo ou o pensamento –, a resposta é óbvia porque as ideias têm corpo (um corpo temporal), mas o corpo não tem ideias (nem conteúdo, além da máquina bem oleada).
Regressa a casa mas há muito mais razões para voltar a partir do que para ficar. Ficar manifesta-se na mala aberta, no chão, à espera de que as coisas que lá estão desapareçam em gavetas. Pensar isso é já começar a ficar. Só começamos a ficar quando partir era tão fácil.
Hoje, finalmente, as visitas aos amigos. As visitas sao eus fracos de cada pessoa. Eu forte (também denominado eu concentrado): estar em casa, estar sozinho, estar a pensar. Eu fraco (também denominado eu distendido ou em gravitação): sair, visitar, viajar. Como se vê, fraco não é usado depreciativamente e o ideal atinge-se no equilíbrio entre eus fortes e eus fracos, sendo que se coloca o problema de onde fazer recair a cesura.
Hoje andei a apagar os vizinhos extintos e a regar os que me pareceram estar em vias de extinção. A nossa percepção do que já está extinto ou ainda pode vir a florescer é essencialmente ditada pela fé que temos na ciência.
Afinal hoje fiquei-me pelas janelas e pelas cartas, sem tempo para mais.
As janelas tinham muitas novidades, em três semanas muita coisa muda de forma profunda. Nem sempre as novidades nos entram em casa pela televisão ou pelos jornais, neste caso entraram por janelas, toda eu olhos e narinas. Não percebi nada do que vi, mas fiquei presa, esquecida dos restantes afazeres. Nem sempre o que não se percebe nos desinteressa, às vezes alivia-nos.
Quanto às cartas, uma desilusão, nem uma ridícula.
Amanhã as plantas ou os vizinhos.
Acabo de regressar de mais uma viagem, foi só mesmo entrar em casa, pousar o correio que se juntou na caixa, ligar a luz no quadro e aqui estou a escrever isto, em pé. Lista de tarefas para amanhã: Abrir janelas e cartas; Regar plantas; Cumprimentar vizinhos; Visitar amigos; Limpar e encher o frigorífico. O meu professor de yoga tem razão: se tirássemos quinze minutos de férias todos os dias, não precisávamos de tirar umas semanas por ano. Vou já tirar os quinze de hoje.
Investigação jornalística revela que as agências de rating norte-americanas consideraram que o Benfica não ia conseguir cumprir o seu compromisso de vencer o campeonato e atribuíram-lhe uma nota entre o Insuficiente e o Suficiente menos (durante um jogo de King).
O regime estava muito desvalorizado e ainda por cima não havia rei para regicidar.
Praticamente desconhecida no seu país, Eugénia Freitas foi uma das melhores cantoras do seu tempo. Primeiro, venceu todos os concursos da sua escola, depois, os da sua cidade, em seguida, os do seu país e, finalmente, vencidos os seus semelhantes, aceitou corajosamente participar num desafio que incluía os melhores canários e rouxinóis do mundo. Veio a perder a voz num desafio contra um EWI 4000S.
No café todos falam de rating e de bancarrota; no breve silêncio que se faz ouve-se um homem a errar a pergunta dos 50 euros porque responde que em Portugal os táxis são pretos e brancos; ninguém quer saber das suas razões – riem-se e regressam às preocupações sérias e às discussões que os fazem ver a vida com outras cores por estes dias.
Aqui nisto
Ali naquilo
Aqui em mim
Ali em ti
Aqui na carta
Ali no carteiro.
A perfeição não se encontra, colecciona-se.
Ainda não sabe como tudo aquilo aconteceu. Fechou o livro, adormeceu e, no dia seguinte, quando voltou a abrir o livro, as letras não estavam lá. Procurou-as entre os lençóis, debaixo da cama, por todo o lado, nada, as páginas estavam em branco.
Quando saiu de casa, viu-as, finalmente, a escorrer num muro branco e a ser lidas, inpudentemente, por todos os habitantes da cidade.
Aviso aos leitores: não leia este post com os olhos, leia-o com a voz de que é capaz.
Túnel
Túúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúú
nel nel neeeeeeeeel neeeeel neeel
Estamos num túnel
Onde estás tú-nel?
Num túnel tudo se amplifica
tudo ganha grandeza
e contornos de eternidaaaaaade
Estamos num túnel enquanto há túnel
para estar
estamos num túnel até ao fim
até à luuuzzzzzzZZ
Quando todos os seus amiguinhos iam para a praia, ele, que estava proibido de apanhar sol, passava os dias na rua a atravessar passadeiras. Pôr o pé na passadeira quando o semáforo estava quase a abrir para os peões, retroceder um passo, avançar dois, medir, hesitar, avançar... era o que mais se aproximava dos passos que dava à beira-mar, provando as ondas. No final do dia a mãe dizia-lhe Vamos, já chega de água.
A luz cai, forte e amarela, em cima do palco, à procura de um ponto de apoio. Não o encontra no palco, nem no seu fundo, nem no corpo do pianista, nem no piano, pois todos se acompanham no negro. Escorre então para as mãos do pianista e aí pára, encontra terreno vigoroso onde se espraiar, se exprimir e se multiplicar na imagem que delas o piano reflecte. É feliz durante todo o tempo que dura o concerto até ao momento em que este termina e ela volta a subir para desaparecer na sua toca.
Era um daqueles dias em que sentia uma sede muito fonte e uma vida muito redondilha maior.
Cansadas, as nuvens pedem aos vulcões que agora chovam por elas e que espalhem as suas cinzas pelo céu de forma a que os voos dos aviões cessem e elas tenham algum silêncio.
Ao homem que, indo já os amigos a alguma distância, continua por inércia a sorrir à porta de casa (favorecendo mesmo assim quem passa) também deves sorrir; não sabes se ele te sorri por necessidade dele ou por necessidade tua.
Com o advento da Primavera, a lagartinha pôs-se ao fresco, vindo a ser a locatária da segunda folha da alface, a contar de fora.
Acordou sobressaltado com um ruído que tanto podia ser de dedos a tamborilar numa pele como de uma aranha a correr pelo quarto. Um ruído saltitante e ritmado que crescia, diminuía, voltava a crescer, voltava a diminuir.
Acendeu a luz: o chão do seu quarto estava transformado num mosaico de meia dúzia de adufes gigantes (cada um feito da pele de uma só vaca) e por cima deles dançava o seu coração em perfeito concerto. Sorriu, aliviado. Nada alegra tanto um homem como ver o seu coração em festa.
A formiguinha chega junto de sua mãe e pressurosa exclama:
– Em tudo o que nos ensinaram sobre a Primavera – calor, flores, lagartas pavorosas – só uma coisa ainda não foi verdade: o amor ainda não chegou.
Quando os homens não suportam a luz, enterram-na. Soterrada, porém, a luz incendeia-se e atinge, incandescente, os corações dos que a enterraram. Qualquer homem sensato sabe que se quer matar um animal deve destruí-lo; emparedá-lo apenas serve para o fortalecer e o fortalecimento da presa há-de ser a fraqueza do predador.
Quando dois homens lutam, é difícil dizer se o que ganha o faz porque ganha ou o faz porque o adversário perde. Não, não são duas faces da mesma moeda, são dois mundos distintos. Perguntem a um e a outro, no final do combate, como se sentem; verão que nenhum deles menciona o outro ou sequer pensa nele, as lutas travam-se no interior de cada um, estando eles alheados de tudo o que é externo – o adversário está fora, ainda que mesmo em frente.
O mesmo se pode dizer do amor. Quando um homem se levanta da mesa do café, cansado de esperar, terá sido ele que desistiu de esperar ou terá sido a mulher que desistiu de vir?
Num caso e noutro era útil que existisse um relógio, mundial, para registar com precisão o momento em que o homem deixa de lutar e passa a perder, o momento em que o homem continua a lutar e passa a ganhar e o momento em que o homem e a mulher desistem de acreditar; um juiz verificaria qual o segundo primordial e quem ditou a sorte das coisas.
Tinha um desejo: que a vida parasse por umas horas (coisa pouca, coisa para ir tomar um café e voltar, descansar um pouco, ler um jornal, falar com um outro conhecido que encontrasse no caminho para a padaria, logo de manhã (mudariam de passeio à procura de sombra (estaria muito sol), aconselhar-se-iam tipos de pão, perguntariam como estavam (estariam bem) e só quando, na despedida, dissesse um provérbio (isso, um provérbio, assim, atirado, um belo e redondo provérbio), iria perceber que aquilo não estava a acontecer de facto (nunca dizia provérbios), mas aí já seria tarde demais, o bem já estaria feito).
Se comprar uma casa fosse apenas comprar um sítio para viver, já teria tomado uma decisão.
Ao longo da sua vida viu milhares de casas, tomando como base de cálculo a média de uma, duas por semana. Quando alguma lhe agradava, voltava lá e tirava medidas. Quando alguma lhe agradava num nível de agrado superior, pedia à agência imobiliária para passar lá a noite – não que acreditasse em energias ou vibrações, mas era muito importante conhecer os ruídos e os ritmos do prédio. Uma vez chegou a alterar a morada em todos os seus documentos pessoais e junto de todas as instituições que lhe escreviam (desistiu do negócio em semanas).
Nunca chegou a comprar casa nenhuma e durante a sua longa existência viveu apenas em duas: na dos pais e na que os pais lhe compraram.
Se comprar uma casa não fosse comprar a própria pele e músculo de que somos feitos, a carne, o osso, o espelho, já teria tomado uma decisão. Assim era difícil. Não há de nós à venda em quantidade suficiente e a preço acessível. Restava-lhe passar, com o entusiasmo e a esperança de sempre, para a casa seguinte.