Terça-feira, 12 de Fevereiro de 2008

Bach e o bacilo de Koch

Chego a casa no fim de um dia estúpido.

O dia estúpido é, por definição, aquele que não correu nem bem nem mal  e cuja ausência de vida seria sonoramente assinalada por um piiiiiiiiiii, devidamente acompanhado da respectiva linha contínua, caso trouxéssemos às costas aquelas máquinas hospitalares, o que, pensando bem, seria um incómodo para a coluna e um embaraço para os nossos ouvidos, que, diante de alguém que nos despertasse emoções mais violentas  fossem elas de agrado ou desagrado  teriam de ouvir o que mais abaixo o coração lhe gritava, sem o disfarce do corpo que como cortina grossa estanca as vibrações que a cabeça não permite.

Pego num CD que já não ouço há muito tempo –  e em cujas primeiras faixas o Sviatoslav Richter, num registo ao vivo feito há mais de quarenta anos, toca Prelúdios e Fugas de Bach, que é coisa capaz de, mesmo nos dias mais estúpidos, me devolver a confiança na vida, não obrigatoriamente na minha, mas pelo menos naquela que se convencionou escrever com maiúscula, como forma de a elevar à categoria de coisa geral  –; aterro no sofá.

Encosto a cabeça e suspiro. Um daqueles suspiros que se dão nestas ocasiões e que, sendo diferentes de todos os outros suspiros que damos nas mais diversas ocasiões, são a expressão respiratória do pré-prazer que toma conta de nós, quando sabemos que estamos na iminência de nos sentirmos muito bem. O que sucede a seguir ninguém sabe, mas esse limiar do prazer já ninguém no-lo tira, e isto não podemos afirmar de muitas coisas no mundo.

Primeiras notas de Bach e alguém na plateia tosse (recordo que é uma gravação antiga e ao vivo). O Richter continua e uma segunda pessoa tosse, terceira, quarta, décima  toda a plateia é uma tosse convulsa e coral (é sabido que nestas coisas primárias como tossir, bocejar ou ter vontade de ir à casa-de-banho, basta alguém começar para logo toda a gente se unir numa solidariedade democrática, animal e unificadora até das almas mais desavindas).

Lembram-se da cegueira do Ensaio do Saramago que afectava toda a gente menos a mulher do médico? Eu sou a mulher do médico  todas as pessoas do mundo tossem menos eu,  que, não sendo uma categoria da narrativa, dou por mim a sentir primeiro uma ligeira comichão na garganta, que logo passa a pigarro, e daí à verdadeira tosse é um salto bem mais fácil de explicar que o quântico. Depois disto, o dilúvio: na minha cabeça já só há sanatórios do Caramulo e traqueostomias, e eu, que me queixava de um dia estúpido e quase invejava ter tido um dia verdadeiramente deprimente, agora que estou num dia deprimente já só queria estar num dia simplesmente estúpido.

Não imagino o que sente o pianista porque nunca estive em tal situação  não distingo um dó de um sol, quanto mais domar um Steinway. Não sei se eles se conseguem abstrair das veleidades esofágicas e faríngicas de quem os ouve, ou se ficam com vontade de fazer estalar cada uma das cabeças que tosse debaixo do tampo do piano, como se estivessem a manipular o quebra-nozes  e aqui não me  refiro ao do Tchaikovsky, mas ao objecto metálico com que se partem as nozes e que, aproveito para dizer, me lembra muito o artefacto com que a minha ginecologista me faz a citologia, aquele exame a que vulgarmente se chama Papanicolau (nome que também nunca percebi se era uma homenagem de mau tom a algum sumo pontífice, se uma designação de mau gosto que, chamando papa ao dito objecto, chama nicolau ao que cada mulher tem de mais íntimo no seu corpo).

Regresso ao momento em que entrei em casa e optei por aquele CD específico, questionando-me sobre o que teria acontecido se eu não o tivesse escolhido  como a Gwineth Paltrow naquele filmito em que, se regressa a casa, surpreende o namorado com outra, e tudo vai por água abaixo, se não regressa, fica sem saber o que se passa, mas tudo acaba por ir por água abaixo de qualquer forma.

Vejam agora como tudo é relativo e como o mundo é pequeno: água era precisamente do que aquelas gargantas precisavam de levar por si abaixo para não me lixarem o dia, que, como julgo ter demonstrado, estaria lixado de qualquer forma porque esse é o sentido de alguns dias  serem lixados.

publicado por Clara Umbra às 22:39
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2 comentários:
De Moyle a 13 de Fevereiro de 2008
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[isto é, vou esperar para ver se sai daqui mais um daqueles "diálogos" com o Brockston]

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