Os homens curvam-se nos 50 cm que sobram entre a noite e o solo. Os mais altos são obrigados a rastejar e, de entre estes, os menos experientes preferem andar de gatas. Os que se atrasam a encontrar um buraco para pernoitar são espalmados pela noite, quando esta completa o seu movimento descendente como uma tampa negra.
Por volta das 6 horas começa a ouvir-se as pesadas roldanas que erguem a gigantesca tampa e os homens, as árvores e os prédios voltam a erguer-se.
Se não fosse uma ou outra fissura que aparece nas paredes, assim como no tronco das árvores e no pensamento de alguns homens, ninguém diria que todas as noites as coisas passam por este ritual.
Ninguém o conseguia convencer de que uma jaula não era lugar para um homem da sua condição social habitar.
Foi à despensa buscar o aspirador e desenrolou o fio. Andou pela casa a observar atentamente os tapetes e escolheu um que teria 2 m2... talvez um pouco menos. Era de lã, beige, debruado a vermelho. Aspirou-o e coseu uma linha que se soltava num dos cantos. Por fim, pegou na sua melhor máquina fotográfica - a Leica V-LUX 1 que comprara recentemente - enrolou o tapete e subiu ao telhado.
Os vizinhos do 4ºD, a quem caiu um tapete na varanda, ficaram com ele; fartos de que os do 5ºD sacudissem os tapetes na janela, acharam que ficar-lhes com o tapete seria uma boa vingança e que eles nunca teriam coragem de descer para reclamar o objecto caído.
Nunca ninguém compreendeu por que razão o vizinho do 2ºE se suicidou com uma máquina enrolada no braço e ninguém notou que faltava um tapete na casa dele (amigo nenhum conhecia a casa com esse detalhe).
Fechado no instante como se fosse um círculo, o homem exigia a si próprio falar do que existia através do poema e do resto do seu corpo.
A sua humanidade tinha origem incendiária.
Retomando a série "fotografias tiradas provavelmente com um Nokia fraquinho" [se clicarem na imagem vêem-na (ligeiramente-quase-nada) melhor]:
(foto Clara Umbra)
Vieram de todas as partes e por motivos diferentes: a uns movia o dever, a outros a ambição, a outros a curiosidade e a outros o metal fundente. Quando nas gargantas destes se derreteu o metal, ficaram as suas feridas expostas perante toda a assembleia, e ainda bem. Só nas feridas se vê que há sangue por baixo das folhas da pele.
Poucas coisas a transtornavam tanto como ver o marido à mesa, durante a refeição, com um osso na mão. Não era uma questão de boas maneiras, era o desrespeito por uma lógica animal (como lhe chamava) que a perturbava: "em nós, os ossos estão por dentro," – dizia – "um homem não pega, assim, num osso. Osso, carne, pele, osso novamente... não pode ser."
Nos seus piores pesadelos, via Circe transformar o seu marido em cão: a coleira com uma pequena bolsa para o telemóvel e para o maço de cigarros, o carro mal estacionado à porta da casota.
Quando encontrava amigos que lhe perguntavam o que tinha andado a fazer nos últimos tempos, dizia, com sinceridade, "a controlar-me, a ganhar liberdade à tirania mecânica e repetitiva das minhas emoções". E não era pouco.
A carruagem está parada na estação. A mulher olha pela janela e vê dez, doze pessoas, umas apenas o rosto, outras o corpo inteiro. Observa-as demoradamente, com um gosto visível.
A marcha recomeça e as pessoas distanciam-se. Inclina mais a cabeça de encontro ao vidro, mas as últimas pessoas da estação desaparecem e ver o seu próprio rosto fá-la recuar rapidamente e desviar o olhar.
"Aristóteles disse que só os humanos conseguem fechar os olhos e continuar a ver o mundo à sua volta" – ouviu ele, e esta ideia não lhe saiu mais da cabeça.
Fechou os olhos e viu todos os homens à sua volta com os olhos fechados e os mundos de cada um à volta deles, num rodopio sem paz, a sugar-lhes os olhos. Abriu os olhos, assustado, e viu todos os homens do mundo, assustados e de olhos bem abertos. Apercebeu-se de que, afinal, isso estava a ser imaginado e que, portanto, ainda devia ter os olhos fechados e voltou a fechá-los e a abri-los várias vezes, até acertar, mas desconcentrou-se e nunca mais soube se tinha os olhos abertos ou fechados, como quando fallta a luz e nós, por distracção, continuamos a acender e a apagar interruptores e nunca sabemos se vamos dar conta ou não de que a luz voltou.
Hoje estive na forja do coxo Hefesto, o único deus feio do Olimpo. Do seu fogo, porém, saíram histórias e no lugar do martelo esteve uma pandeireta.
A História pode ser circular e cheia de peripécias – como o escudo de Aquiles – mas decididamente não se repete.
Era um caso difícil de resolver: não havia móbil, nem suspeitos, nem testemunhas, apenas a habitual arma do crime – uma panela de sopa.
A mulher saiu de casa à espera de encontrar o dia da mulher. Encontrou outras mulheres que esperavam o mesmo e outras que esperavam outras coisas. Encontrou coisas que não esperava encontrar e coisas que não a esperavam a ela. Também se desencontrou de umas quantas coisas: umas que nada fazia prever que delas se iria desencontrar e outras que toda a gente sabia que ela não iria nunca encontrar, nem mesmo que este dia fosse só o desta mulher, quanto mais sendo o de todas. É pouco um dia para todas as mulheres, além de ser publicidade enganosa, pensou.
Hoje fui visitar a minha mãe. Ela tinha, como todos os anos nesta altura, as magnólias a florir no cabelo.
No deserto, passa a serpente, aos esses, para não estragar o relevo ondulado da areia. A seguir, passa o canguru, rápido. Por fim, o gato, desconfiado, enquanto a lua inteira fareja o seu dorso, à procura dum pescoço fino para afagar.
Lorna, que corre obstinada por todo o lado, procura, agora, lenha no bosque; entre as árvores quase despidas vêem-se as calças vermelhas. Encontrou o amor onde não o esperava e, agora que o perdeu (perdido já estava à partida), faz uma fogueira não para aquecer o que resta de si, mas para aquecê-la a ela e ao que acrescentou a si própria. Quanto mais esta mulher perde (ou parece perder), mais ganha, não há matemática que explique a ilusão.
O casal ia sentado à minha frente e eu pude ouvir, claramente, o homem suplicar à mulher que não o deixasse ficar mal. Quem se tivesse sentado, naquele mesmo lugar, um minuto antes, tê-la-ia ouvido dizer "não consigo, não consigo fazer isso que tu me pedes". Uns bons minutos antes ouviu o revisor, sem surpresa, o que o homem, falando muito baixo, rogava à sua mulher (que não era outra mulher, era a sua): que o matasse, com um tiro na nuca, num lugar e numa data a combinar, mas que não lhe destruísse o rosto, que não o deixasse ficar mal.