Detesta bares de karaoke e, quando chega a sua vez, interpreta sempre a mesma música, mas fá-lo como ninguém:
I got a broken face
I got a
I got a broken face
Uh-hu, uh-hu, uh-hu, uh-hu, ooo
I got a broken face.
V., advogada, foi trabalhar com uma das pernas dos collants fora das calças, a saltitar como uma cauda; aconselharam-na a meter baixa. T., mecânico, incendiou o prédio onde morava porque pôs o almoço a fazer e saiu de casa para tomar café; encontra-se em prisão preventiva. S., recepcionista, deixou de almoçar fora de casa porque tem de passar toda a sua comida, obcecada com a ideia de que se vai engasgar e morrer. B., professor, escreveu, no trabalho do aluno, "premissão" e ninguém acreditou que ele soubesse perfeitamente como se escrevia "permissão"; foi despedido.
Natura potentior ars, escreveu Tiziano, em tantos prédios da cidade quantos pôde, durante a noite, e, de manhã, só se contava que Eva correu por entre as macieiras / e todas as flores nasceram da terra. As pessoas reconhecem a verdade quando a encontram.
Estando-se emparedado, deve ser muito difícil suspirar, pensou.
Dividiu a folha ao meio com um traço vertical. De um lado registou o que já tinha tido e já não tinha, do outro o que tinha agora; em ambas as colunas factos e pessoas listadas pela sua ordem de importância. Sublinhou duas ou três coisas que já tivera e que agora lhe faziam muita falta. Com umas setas, conjugou as de uma coluna com as da outra, inverteu pesos e proporções... De nada adiantava, as do passado continuavam a ganhar às do presente, que futuro pode um homem ter, assim?
Juntara-se pouco correio na caixa: duas ou três cartas do banco e uma conta. Olhou à sua volta e achando-se completamente sozinho, introduziu com dificuldade a mão fina e comprida nas caixas dos vizinhos e retirou uma ou duas cartas das caixas de cada um deles. O correio avolumou-se na sua caixa, olhou-a com satisfação e saiu do prédio.
O café, outra vez, a espuma na colher, o sol a passar devagar pela mesa ao ritmo da tarde, como num filme.
Recomeçava tudo como se fosse a primeira vez: os bons dias aos conhecidos, entretanto esquecidos e por isso perdoados, as boas tardes aos inimigos, entretanto perdoados e por isso esquecidos, as boas noites ao peixinho-nenúfar cada vez mais verde e mais nenúfar no seu pensamento.
Quando todos regressavam de fora, ele regressava de dentro, como quem sai do útero, novinho em folha, mas sabendo já umas quantas coisas; enfim, o desejo de qualquer um.
Quando Abril chegava, todas as pessoas da sua rua iam para fora, descansar. Ele ia para dentro.