No dia seguinte não conseguia ouvir nada. Estava enjoado de sons, entupido de ruídos. Sentia um eco contínuo a atordoá-lo. Aproximou-se de um lago e puxou de cada ouvido um rolo de músicas: wish you were over the rainbow don't you forget I dye a little... Quando terminou foi como se lhe tivessem nascido orelhas novas.
Porque o amor é isto: um céu de ininterrupto azul e um sol de contínuo calor. Tudo o resto será teoria ou poesia... não é a vida.
Na penúltima carruagem do comboio viajavam os que usavam obsessivamente telemóveis, leitores de música e outros aparelhos electrónicos. Há muito que ficara provado que eram nocivos para a saúde e a Ordem Médica Mundial emitira um conjunto de recomendações que incluía a disposição de todas as pessoas que sofriam de algum tipo de patologia nos meios de transporte públicos.
A antepenúltima carruagem, onde este homem acabou por se sentar, entalado entre uma Alhambra e um Steinway vertical, era reservada a todos os que tinham contraído a mais recente epidemia que assolava a sociedade, uma espécie de demência que os fazia acreditar que eram instrumentos musicais ou dispositivos electrónicos utilizados na música.
Quando o comboio parou na estação e o homem, acompanhando o solavanco da travagem por inércia, se inclinou levemente para a direita, todas as cordas de nylon da vizinha do lado se arrepiaram de prazer.
Ultimamente acontecia-lhe com frequência.
Acordava a meio da noite com a cabeça cheia de palavras, de versos inteiros, de versos partidos, dodecassílabos, se era mais próximo da manhã, apenas um hemistíquio, se ainda era noite.
Levantava-se e andava pela casa, atordoada de sílabas, à procura da palavra certa – se a não encontrava dentro de si – nas lombadas dos livros, nos nomes dos objectos, nos títulos de álbuns, nas imagens da televisão sem som.
Quando amanhecia e saía de casa, ouvia as pessoas falar e não prestava atenção ao que diziam, contava-lhes as sílabas métricas. Todos os sons da rua correspondiam a troqueus, iambos, dátilos e anapestos.
Cada hora passou a ser uma página de um imenso livro onde era urgente escrever mais uma palavra. Cada vez que olhava para fora de si via linhas por encher e cada vez que olhava para dentro de si via palavras por alinhar.
- Dizei, o que quereis?
Diante do rei, a jovem explicou:
- Construir uma máquina que nos permita viver em diversas pistas temporais: o meu tempo será o tempo da minha mãe, e o da minha avó, e o da minha bisavó... e eu continuarei a ser eu, e a filha dela, e a neta dela, e a bisneta dela... Entraremos e sairemos de cada painel do tempo quando quisermos, sem poder alterar, nunca, a história. Olharei para todas elas como agora olho as estrelas e no entanto elas já desapareceram há milhares de anos.
Um dia deixou cair alguns anos na alameda que conduzia a sua casa e os liquidâmbares que no outono passado não tinham mais do que uns palmos douraram a tarde. Falou-se muito de alterações climáticas por essa altura. Procuram-se sempre explicações bizarras para as coisas simples.
O homem subiu à acrópole.
De lá, ouvia todas as tablas do mundo ribombar ao compasso do seu coração.
Via luzes fluorescentes, que tentava seguir com o olhar, mas que se perdiam no meio de datas e de rostos cruzados na memória (ao ritmo das tablas que ribombavam ao compasso do seu coração).
Ouvia também a respiração das frases que tencionava dizer, mas que não chegava a pronunciar, porque se perdiam por entre ecos, reverberações e tablas da memória.
Quando se atirou, deixou de ouvir as tablas para só ouvir a respiração do coração.
Quando o corpo caiu no chão, foi o eco da memória que se ouviu.
Era um homem muito religioso. Oferecia presentes e sacrifícios pessoais a diversos deuses, em troca de respostas, numa estranha hierarquia: pedia a um segundo para a eventualidade de o primeiro não o atender, a um terceiro, para suprir alguma falha do segundo, e por aí em diante. Quando esgotava todos os que conhecia e as suas preces não eram ouvidas, subia ao monte e pedia a um deus desconhecido, receando que houvesse deuses em falta. Ele procurava razões e sentidos e explicações para as coisas. Ora não se pode procurar razões e sentidos e explicações para as coisas. Se se encontra, excelente, procurar não vale. É como procurar uma moeda no chão. Conheço pelo menos cinco pessoas que encontraram dinheiro no chão e nenhuma delas estava à procura, mas todas deram conta de que o tinham encontrado.
Bateram à porta. Há três anos que ninguém o visitava, ninguém o procurava, ninguém lhe telefonava. Abriu. As leis eram claras: pessoa que fique três anos sem que ninguém a reclame é desmontada para peças. Quando as leis são claras e justas não se questionam e ele não era um arruaceiro.