Já foi .recomeço pó fim começo engano
céu terra
estrela encantamento
pele inferno
degrau perdição
janela prisão
telha luz
manhã rio canção caminho túnel noite
O homem pecador sai de casa a correr, atravessa a rua a correr, protege-se com o jornal mas este logo se rasga, protege-se com as mãos mas em breve fica com elas em ferida, abriga-se nas portadas dos prédios mas os habitantes das casas e os donos das lojas enxotam-no, não querem o chão sujo de sangue, as pedras caem-lhe em cima violentamente e vão-lhe ferindo o corpo e a cara, ele entra num carro mas uma pedra enorme destrói-o, entra num rio mas as pedras atravessam a água com facilidade, entra no mar mas este abre-se em dois, vê Deus, suspira de alívio, bate palmas desenfreadamente e sorri com a parte do rosto que ainda movimenta – qualquer homem desesperado a pedir ajuda é patético – mas Deus desaparece-lhe tão subitamente quanto apareceu, o mar fecha-se, a seguir evapora-se, no areal agora deserto apenas as pedras continuam a cair e ele duvida que Deus lhe tenha aparecido, cada um tem a verdade que merece.
Tinha uma imaginação tão prodigiosa, tão prodigiosa, que quando ouvia uma boa ideia achava que era sua.
Todas as coisas, uma a uma, o abandonaram, até já só restar o fóssil.
50 mil anos depois, percebeu, finalmente, a razão de ser de tanta solidão e de como lhe estava, afinal, guardado um destino maior.
Esse rio que vai lento
espreguiçando-se a teus pés
não traz nunca a mesma água
não volta nunca para trás
Já não é o mesmo rio
e nem uma das suas ondas
voltará para a nascente
Não te prendas a uma onda qualquer
que a teus pés venha morrer
Enquanto o teu pé estiver
dentro dessa mesma água
Muitas outras novas ondas
junto dele irão morrer
Na cidade onde eu vivia
sempre tão cheia de gente
se bem que ninguém lá fique
é costume ouvir cantar
Uma cantiga que fala
do fluir das coisas que há
neste mundo, e assim começa
Não te prendas a uma onda qualquer
que a teus pés venha morrer
Enquanto o teu pé estiver
dentro dessa mesma água
Muitas outras novas ondas
junto dele irão morrer
Eu não digo que não quisesse correr se ao menos tivesse pernas
mas sabem que não tenho e, parecendo que não, isso muda tudo.
Dizendo isto eu não digo que não tenha pernas de todo,
o que eu não tenho é das boas, das que correm a bom correr, como se diz.
Diz-se isso e até se diz mais, diz-se que quem corre por gosto não cansa
e outras verdades igualmente belas e certamente ditas
por quem tem duas boas pernas.
Sempre corri violentamente mas elas sempre me ficaram para trás
atulhadas de lixo ou naufragadas nalguma poça.
Mas é cedo, ainda. É sempre cedo para se ter o corpo certo,
aquele que faça aquilo que nós queremos que faça.
Vamos ver se me crescem outras, melhores, ou se se
fortalecem estas, enquanto ainda me pertencem.
No deserto o tempo esteve quase sempre escaldante.
Os sons chegavam-nos abafados, soprados
como se proviessem de muito longe
(de corpos inclinados para a frente, a flutuar)
e batiam-nos na cara em baforadas leves e encorpadas.
Comemos raízes e bebemos uma água barrenta durante dias.
Dormimos, enrolados em lençóis, em cima da terra
à procura da humidade, escondida, do mundo.
É provável que numa noite os astros nos espreitassem
conjurando sobre o nosso destino
porque o que é certo é que acordámos
e estávamos tão mortos quanto se pode estar
pelo que nos é dado conhecer, que não é muito.
Poderíamos falar de escutas, assunto na ordem do dia.
Poderíamos falar de escotilhas, assunto na ordem do mar.
Poderíamos falar de partilhas, pastilhas, sintonias, equívocos e até de cabos eléctricos, como os de Ávila.
Poderíamos dizer tanta, tanta coisa.
Trouxe-vos fotografias da viagem.
(foto Clara Umbra)