Ainda não sabe como tudo aquilo aconteceu. Fechou o livro, adormeceu e, no dia seguinte, quando voltou a abrir o livro, as letras não estavam lá. Procurou-as entre os lençóis, debaixo da cama, por todo o lado, nada, as páginas estavam em branco.
Quando saiu de casa, viu-as, finalmente, a escorrer num muro branco e a ser lidas, inpudentemente, por todos os habitantes da cidade.
Aviso aos leitores: não leia este post com os olhos, leia-o com a voz de que é capaz.
Túnel
Túúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúú
nel nel neeeeeeeeel neeeeel neeel
Estamos num túnel
Onde estás tú-nel?
Num túnel tudo se amplifica
tudo ganha grandeza
e contornos de eternidaaaaaade
Estamos num túnel enquanto há túnel
para estar
estamos num túnel até ao fim
até à luuuzzzzzzZZ
Quando todos os seus amiguinhos iam para a praia, ele, que estava proibido de apanhar sol, passava os dias na rua a atravessar passadeiras. Pôr o pé na passadeira quando o semáforo estava quase a abrir para os peões, retroceder um passo, avançar dois, medir, hesitar, avançar... era o que mais se aproximava dos passos que dava à beira-mar, provando as ondas. No final do dia a mãe dizia-lhe Vamos, já chega de água.
A luz cai, forte e amarela, em cima do palco, à procura de um ponto de apoio. Não o encontra no palco, nem no seu fundo, nem no corpo do pianista, nem no piano, pois todos se acompanham no negro. Escorre então para as mãos do pianista e aí pára, encontra terreno vigoroso onde se espraiar, se exprimir e se multiplicar na imagem que delas o piano reflecte. É feliz durante todo o tempo que dura o concerto até ao momento em que este termina e ela volta a subir para desaparecer na sua toca.
Era um daqueles dias em que sentia uma sede muito fonte e uma vida muito redondilha maior.
Cansadas, as nuvens pedem aos vulcões que agora chovam por elas e que espalhem as suas cinzas pelo céu de forma a que os voos dos aviões cessem e elas tenham algum silêncio.
Ao homem que, indo já os amigos a alguma distância, continua por inércia a sorrir à porta de casa (favorecendo mesmo assim quem passa) também deves sorrir; não sabes se ele te sorri por necessidade dele ou por necessidade tua.
Com o advento da Primavera, a lagartinha pôs-se ao fresco, vindo a ser a locatária da segunda folha da alface, a contar de fora.
Acordou sobressaltado com um ruído que tanto podia ser de dedos a tamborilar numa pele como de uma aranha a correr pelo quarto. Um ruído saltitante e ritmado que crescia, diminuía, voltava a crescer, voltava a diminuir.
Acendeu a luz: o chão do seu quarto estava transformado num mosaico de meia dúzia de adufes gigantes (cada um feito da pele de uma só vaca) e por cima deles dançava o seu coração em perfeito concerto. Sorriu, aliviado. Nada alegra tanto um homem como ver o seu coração em festa.
A formiguinha chega junto de sua mãe e pressurosa exclama:
– Em tudo o que nos ensinaram sobre a Primavera – calor, flores, lagartas pavorosas – só uma coisa ainda não foi verdade: o amor ainda não chegou.
Quando os homens não suportam a luz, enterram-na. Soterrada, porém, a luz incendeia-se e atinge, incandescente, os corações dos que a enterraram. Qualquer homem sensato sabe que se quer matar um animal deve destruí-lo; emparedá-lo apenas serve para o fortalecer e o fortalecimento da presa há-de ser a fraqueza do predador.
Quando dois homens lutam, é difícil dizer se o que ganha o faz porque ganha ou o faz porque o adversário perde. Não, não são duas faces da mesma moeda, são dois mundos distintos. Perguntem a um e a outro, no final do combate, como se sentem; verão que nenhum deles menciona o outro ou sequer pensa nele, as lutas travam-se no interior de cada um, estando eles alheados de tudo o que é externo – o adversário está fora, ainda que mesmo em frente.
O mesmo se pode dizer do amor. Quando um homem se levanta da mesa do café, cansado de esperar, terá sido ele que desistiu de esperar ou terá sido a mulher que desistiu de vir?
Num caso e noutro era útil que existisse um relógio, mundial, para registar com precisão o momento em que o homem deixa de lutar e passa a perder, o momento em que o homem continua a lutar e passa a ganhar e o momento em que o homem e a mulher desistem de acreditar; um juiz verificaria qual o segundo primordial e quem ditou a sorte das coisas.
Tinha um desejo: que a vida parasse por umas horas (coisa pouca, coisa para ir tomar um café e voltar, descansar um pouco, ler um jornal, falar com um outro conhecido que encontrasse no caminho para a padaria, logo de manhã (mudariam de passeio à procura de sombra (estaria muito sol), aconselhar-se-iam tipos de pão, perguntariam como estavam (estariam bem) e só quando, na despedida, dissesse um provérbio (isso, um provérbio, assim, atirado, um belo e redondo provérbio), iria perceber que aquilo não estava a acontecer de facto (nunca dizia provérbios), mas aí já seria tarde demais, o bem já estaria feito).
Se comprar uma casa fosse apenas comprar um sítio para viver, já teria tomado uma decisão.
Ao longo da sua vida viu milhares de casas, tomando como base de cálculo a média de uma, duas por semana. Quando alguma lhe agradava, voltava lá e tirava medidas. Quando alguma lhe agradava num nível de agrado superior, pedia à agência imobiliária para passar lá a noite – não que acreditasse em energias ou vibrações, mas era muito importante conhecer os ruídos e os ritmos do prédio. Uma vez chegou a alterar a morada em todos os seus documentos pessoais e junto de todas as instituições que lhe escreviam (desistiu do negócio em semanas).
Nunca chegou a comprar casa nenhuma e durante a sua longa existência viveu apenas em duas: na dos pais e na que os pais lhe compraram.
Se comprar uma casa não fosse comprar a própria pele e músculo de que somos feitos, a carne, o osso, o espelho, já teria tomado uma decisão. Assim era difícil. Não há de nós à venda em quantidade suficiente e a preço acessível. Restava-lhe passar, com o entusiasmo e a esperança de sempre, para a casa seguinte.