e o meu amigo sangue azul disse: agora é que deus se vai vingar...
O homem passara anos a coleccionar chaves num quarto onde ninguém podia entrar. Quando morreu e a sua viúva, por fim, entrou no aposento, encontrou, surpresa, uma chave apenas. O espírito deste coleccionador não era o de juntar mas o de se autocorrigir. Uma nova chave era adquirida graças às propriedades a, b e c e, assim, substituía a anterior que só tinha as propriedades a e b e que, por sua vez, já substituíra a chave com a única propriedade a (isto para reconstituir o início da colecção).
Querer compreender a natureza humana é como querer medir o cosmos com um sistema de medida como os metros ou as milhas.
A surpresa precisa de espaço, se não houver espaço, ela não entra. É volumosa, sonora e gosta de protagonismo. Correcto: é de uma família oposta à da memória. Quando uma memória vem na sua direcção, a surpresa muda de passeio. Como é mais rápida, fá-lo antes que a memória levante a cabeça e a veja.
O peregrino – ou outro homem que viaje – vai à procura da surpresa, mas só a encontra se disser não era nada disto que eu esperava encontrar.
O pensamento que espera é da família (amaldiçoada) das expectativas e o pensamento que encontra pertence à família (feliz) dos reconhecimentos. Um sinónimo de expectar é distrair-se e um de reconhecer é encontrar-se.
São muitas as razões que te levam a partir. O teu corpo vai ser uma extensão do teu pensamento e há-de fazer o que pensares, sem querer saber a razão. Se (numa brincadeira de crianças) perguntares quem nasceu primeiro – o corpo ou o pensamento –, a resposta é óbvia porque as ideias têm corpo (um corpo temporal), mas o corpo não tem ideias (nem conteúdo, além da máquina bem oleada).
Regressa a casa mas há muito mais razões para voltar a partir do que para ficar. Ficar manifesta-se na mala aberta, no chão, à espera de que as coisas que lá estão desapareçam em gavetas. Pensar isso é já começar a ficar. Só começamos a ficar quando partir era tão fácil.
Hoje, finalmente, as visitas aos amigos. As visitas sao eus fracos de cada pessoa. Eu forte (também denominado eu concentrado): estar em casa, estar sozinho, estar a pensar. Eu fraco (também denominado eu distendido ou em gravitação): sair, visitar, viajar. Como se vê, fraco não é usado depreciativamente e o ideal atinge-se no equilíbrio entre eus fortes e eus fracos, sendo que se coloca o problema de onde fazer recair a cesura.
Hoje andei a apagar os vizinhos extintos e a regar os que me pareceram estar em vias de extinção. A nossa percepção do que já está extinto ou ainda pode vir a florescer é essencialmente ditada pela fé que temos na ciência.