Para cima de dez vezes me aconselharam, nestes últimos dias, a tomar chá de casca de cebola para a rouquidão. A mim, tanto se me dá como se me deu estar afónica, até chega a ser uma bênção porque não tenho de falar com ninguém, nem de fazer conversa. Cumprimento com um gesto e pronto − e eu cumprimento com gestos como ninguém, esse crédito me seja concedido, não sou muita alta e os gestos saem-me, por consequência anatómica, com um grau de perfeição acrobático-estética verdadeiramente digno daquele passe final das ginastas, quando, depois de dez mortais empranchados à retaguarda, chegam ao solo e se esticam com os braços no ar diante do júri. Ciente de que o meu aceno não se quer tão largo, porque raramente cumprimento júris em estádios olímpicos, sai assim com aquele charme do aceno imortal do Kundera e é bem capaz de também ficar aí a trabalhar na cabeça de muito gajo que se pretenda escritor. Regressando, porém, ao chá de casca de cebola, a simples alusão a semelhante bebida, que deve resultar pardacenta e com coisinhas a boiar no cimo da chávena, a não ser que se lavem as cascas e lá se vai o efeito terapêutico da cebola, irrita-me profundamente e traz ao de cima, também em mim, coisas que eu preferia manter caladas nas profundezas do meu ser, ou, pelo menos, afónicas como as cordas vocais, até porque faço gala em que no meu corpo as coisas funcionem em uníssono e, se não há voz para umas partes, não há voz para outras. Isto para dizer às pessoas que não devem massacrar as outras com receitas de chás e, se o querem fazer, então que sugiram aquelas caixinhas da Lipton ou coisa que o valha, em que as folhas bentas se assumem devidamente trituradas e guardadas dentro de saquinhos alvos e assépticos... porque ouvir «devias fazer chá de casca de cebola» chateia a paciência até das pessoas mais pacientes como eu. Irrita, ou melhor, inrita – que nestes casos o n traz sempre muita sonoridade e, consequentemente, plasticidade às palavras; defendo sempre o aparecimento de um n depois do i, como na palavra indentidade, que li há dias e me pareceu muito bem e que o n lhe dava outro sainete.
À guisa de intróito falei do chá de cebola, mas, para ser absolutamente verdadeira, há poucas coisas neste mundo tão irritantes como estar na fila do Multibanco e era quase disto que eu queria falar.
Eu sei que não é o fim do mundo, que não dói, que não é cancro, que não é fome... mas chateia. Sobretudo quando, pela frente, se apanha o género de pessoas que vai levantar dinheiro, pagar a água, a luz, o telemóvel, consultar movimentos, fazer transferências… confirmar, enfim, que existe – através da ida ao Multibanco, inscrevem-se no mundo da forma mais comezinha possível: como pessoas domiciliadas, fiscais, contribuintes, e que fazem tudo isto de modo honesto e a horas.
Ainda quando há um gajo bom na fila, preferencialmente na fila do lado, ou na minha mas à frente, desde que não haja ninguém muito possante a tapar-me as vistas, tudo bem, o tempo resvala veloz e interessante, enquanto lhe aprecio, com o rigor crítico exigido, o corpo, o rosto, a roupa, as mãos, se tem estilo, se não tem, o que fará se usa aqueles sapatos, o que esperará da vida, aquele cabelo já precisava de outro corte, aposto que ouve Il Divo (e isso em mim tem logo um extraordinário efeito anti-afrodisíaco, tipo desumidificador) e todas aquelas coisas que me ocorrem quando um gajo jeitoso está à vista, e que aqui me coíbo de pormenorizar por não serem da vossa conta e, definitivamente, não interessarem ao caso.
De toda a maneira, pior, muito pior, é a coincidência de haver telemóveis com toques parolos ou, pior ainda, os próprios parolos − sem a hipálage − a falar ao telemóvel. Nunca me inteirei da vida de tanta gente como desde que inventaram as ATM (e notem que eu não escrevo ATM's, porque me causa clamídia): o telemóvel toca e a pessoa que atende olha em redor para ver se pode entabular íntima conversação à vontade ou se tem de se resguardar. Ora, ou sou eu que tenho cara de quem não faz mal a um insecto e nunca, mas nunca, irá divulgar ao mundo o que ouviu, ou nunca apanhei pessoas cujo desejo de ocultar as suas existências deprimentes fosse um imperativo moral, ou, vá lá, estético, de sorte que tenho sido brindada com histórias bestiais… que não posso reproduzir pelos motivos acima indicados, pelo menos não antes de mudar os nomes das pessoas e das localidades.
Dizia eu que há poucas coisas tão irritantes como, mas o que me faltou dizer foi que há as que são ainda mais implicantes, num nível de implicância que roça a vontade de me suicidar ou de, pelo menos, fazer algum mal a mim própria como arrancar uma unha, e é de uma delas que quero falar desde o início deste texto. É difícil dizer se as supracitadas são mais ou menos irritantes do que a tal que não tardo a introduzir. Digamos que são menos, se estabelecermos esta de que vou falar como centro do cânone, assim à maneira do Harold Bloom: se esta estiver no centro, podemos reunir uma série de outras que são parecidas, por entrarem também no espírito ouvir-pessoal-seca-é-uma-seca, mas que ainda assim são satélites que ficam a léguas do núcleo.
Ao núcleo vou eu já direita, porque essa é a forma de lidar com os núcleos, para explicar, então, que verdadeiramente debilitante, para não dizer incapacitante, é estar a tentar trabalhar e ter, ao lado, colegas que pensam alto. Isto sim é o verdadeiro inferno e não o das chamas e isso. Trocava, de bom grado, uma hora com estas senhoras por uma estadia, digamos, um voucher de meia dúzia de noites no inferno das chamas e isso. No fundo, não são más pessoas, apenas têm necessidade de verbalizar para pensar, como há pessoas que têm de arrotar ou libertar a sua aerofagia para não ficarem mal dispostas (e têm um papel passado pelo médico a dizer que têm de fazer estas porcarias e tudo): o pensamento tem de lhes sair em palavra para se constituir em pensamento, primeiro a palavra e depois a coisa, mecanismo complexo – mas não daquela forma fantástica à Pedro Tamen «Disseste: o sol nasceu. / Foi verdadeiramente então que o Sol nasceu / e que nos habituámos todos a dizer / que o sol nasceu.» Nada disso, pelo contrário, passo a exemplificar. Elas entram na sala de trabalho a dizer «bem... eu agora havia de ir ali ao computador...» – e para esta gente o computador é sempre um local, um lugar distante, um lugar estranho [fica bem aludir a este filme de que até gosto bastante, sobretudo do final com o Just like honey…]. O computador é para elas um espaço onde é preciso ir, concepção que deve ser herdeira da ida à fonte, à eira, por aí, coisas dos antepassados. Ficou-lhes esse ir no sangue, nos genes, entranhado nalguma parte do corpo que não desconfigura nem desformata com o passar das gerações. Sentam-se, então, «ao computador» e continuam «ora, deixa cá ver, tenho isto gravado na pasta... ai! mas onde é que fulano me disse que gravou isto...? ó meu Deus, eu não tenho idade [tempo, saúde, aqui as razões variam mas são sempre da ordem do queixume] para isto...!».
É neste exacto momento que eu, de forma discreta, para não ferir susceptibilidades e porque tenho bom coração, ponho os fones nos ouvidos, só que o faço tão sub-repticiamente que daí a nada tenho-as a perguntar-me qualquer coisa, e se apanho uma mudança de música ou uma parte da música mais sossegada, não consigo fingir que não ouvi, até porque já fingi e foi pior, esse fingimento deu lugar a uma coreografia de acenos que ainda me deprimiu mais. Apercebem-se de que eu estava a ouvir música e dizem-me, invariavelmente, mas invariavelmente mesmo, eu seja ceguinha se não é isto, e por esta ordem: (i) «ó Clara, desculpa, não vi que estavas a ouvir música...», (ii) «...podes ajudar-me?», (iii) «eu não sei como é que consegues trabalhar com música, só eu tenho tanta dificuldade em concentrar-me...» e, finalmente, a cereja no bolo, (iv) «...e então com alguém a falar ao lado? aí é que não consigo fazer mesmo nada!». E dizem isto a sorrir, porra.