Não sei muito bem por onde começar. Vejamos assim.
Esta manhã acordei com o despertador do telemóvel; levantei-me, desliguei o relógio-despertador (programado para tocar dez minutos depois do telemóvel), subi a persiana do quarto e fui à casa-de-banho. Não foi imediatamente que vi, foi depois de ter batido com o joelho no armário que está à entrada, quando me olhei ao espelho, à procura da expressão de dor.
Na fracção de segundo - fórmula fácil e inquestionável de medir o tempo cuja pequenez escapa às medidas a que nos agarrámos - que separou a percepção da dor, do olhar-me no espelho, pensei na parvoíce que me preparava para fazer e donde raio viria a curiosidade que sentimos por ver, reflectida, a nossa cara de gozo e de dor, mas não cheguei a conclusão nenhuma, porque as minhas inquietações, lentas e ensonadas, foram interrompidas pela ausência do que procurava: olhei-me no espelho e não vi a expressão de dor. Olhei mais atentamente, e nada; pior, não estava lá também a expressão da procura, o arregalar dos olhos, a sombra escura do pânico no fundo do olhar... nada. Vi-me aproximar do espelho e vi-me afastar duas ou três vezes seguidas, mas nem um leve estreitar de olhos, nem o mais remoto trejeito de boca, o mais rápido franzir de nariz, nada, nenhuma destas expressões linguísticas que classicamente fixaram as nossas expressões faciais tinha um correspondente no meu rosto. Não obstante o emaranhado de pensamentos que me contorcia, a minha cara mantinha-se impassível e - parece-me, agora que penso nisso com mais calma - os meus gestos de aproximação e distanciação do espelho eram muito mais calmos do que eu os executava interiormente. Não tinham tempo, era isso, os meus gestos, naquele momento, não tinham tempo, não tinham o seu tempo. Parecia-me que não tinha saído da cama, que estava lá, deitada, virada para cima, olhos abertos, a viver qualquer coisa que não passava para fora, e, no entanto, ali estava eu, na casa-de-banho, a esfregar o joelho magoado.
[A contar o resto... brevemente.]