Esse homem, cujo pesadelo era desencontrar-se de Deus por minutos, não me saiu da cabeça - recordo-me perfeitamente. Aparecia-me com a cara do Gonçalo M. Tavares, os cabelos negros revoltos numa loucura de lucidez forçada, mas, aí, já eu estaria provavelmente a dormir, ou a dormir o homem que agora era o escritor e daí os cabelos revoltos. Dormia meio dobrado, ele, sobre uma tábua de passar a ferro que ficava entalada num corredor. Houve um momento - juro - em que o homem tinha a estatura de uma criança e dava pequenos saltos perto de uma lareira, e Deus era o Pai Natal que se atrasava para uma redenção de embrulhos, mas aí já eu dormia, certamente.
Tentei ver-me dormir para perceber se nessa altura já aquilo tinha acontecido e vi-me deitada, perto de mim, de olhos fechados, a boca um pouco torcida mas sem expressão. Vi-me mexer-me, ouvi-me murmurar, vi-me dobrada no equilíbrio frágil da tábua, vi tudo isso e tudo vos conto, mas continuo sem saber se nessa altura já o meu rosto se tinha desencontrado de mim.
[a continuar]