Agora já eu estou no meu carro e dirijo-me para o hospital. Continuo obcecada com a recordação meticulosa de tudo o que fiz ontem. Talvez devesse registar aquilo de que me vou lembrando, os médicos gostam destas coisas e tratam-nos mal quando somos pouco rigorosos.
Antes de me deitar e ler a Egoísta, o que fiz? Não saí de casa - eu saio pouco, aborreço-me quase sempre, não vale a pena. Também não esteve lá ninguém, era dia de semana. Não consigo ver com clareza o que fiz depois do jantar, mas subitamente recordo-me de uma história que ouvi, de manhã, e que pode ter interesse para o caso porque me impressionou muitíssimo. Foi a história de um homem de 83 anos que foi operado ao único olho de que via e, na recuperação, entregue aos cuidados da mulher, ficou cego porque ela, ao colocar-lhe as gotas, desequilibrou-se e perfurou-lhe essa vista com o bico do frasco do medicamento. É caso para dizer, não querendo de forma alguma brincar com o caso, que a história ficou a perfurar-me os pensamentos ao longo do dia e, numa das vezes em que fui à casa-de-banho, no trabalho, vi esse velho Tirésias por trás de mim, a caminhar ao meu encontro, com o braço estendido adiante do corpo, quase tocando as minhas costas. Não trazia as suas terríveis profecias, aproximava-se com um ar curioso e apenas me perguntava pela mulher, que fugira de casa no dia em que o cegou. O mais provável é que eu tenha imaginado isto enquanto dormia, embora me pareça tão real como o almoço no refeitório e as apostas relativamente ao vencedor das presidenciais americanas.
Estou no hospital e não faço a mínima ideia de onde me devo dirigir. Neurologia? Psiquiatria? Observo a folha que me pedem para preencher e onde já estão quase todos os meus dados. Felizmente, penso, ninguém se apercebe da minha aflição. Motivo da vinda às urgências? Indisposição severa, acabo por assinalar. O severa parece-me adequado.
[Mais, brevemente.]