O médico tem cerca de 50 anos, é alto e tem olhos azuis. No consultório há um rádio, já com alguns anos, que apanho no intervalo de duas músicas, de forma que, quando entro, não percebo imediatamente se foi o médico que disse alguma coisa, se foi o apresentador do programa. Ele está de cabeça baixa, sobre uns papéis que preenche diligentemente, o médico. Mal me olha.
Quando era miúda e tinha de me confessar, recordo-me de que, quando estava pouco conversadora, rezava para que me aparecesse um padre taciturno e rápido e, quando me apetecia conversar e expor as minhas dúvidas, ansiava por encontrar um padre falador; muitas vezes, porém, me trocavam as voltas, talvez até demasiadas vezes. Penso nisso agora, enquanto me sento diante dele, do médico, que espécie de médico será. Penso também na obsessão que sentia com a revisão mental dos pecados, antes da confissão, e o medo de me esquecer de algum - chegava a contá-los, como mnemónica – tal como pensei já hoje, vezes sem conta, em tudo o que fiz ontem.
Conto-lhe tudo. O que fiz, o que senti, tudo. Ele olha-me com um ar bondoso e compreensivo, como que a incitar-me a que continue. Continuo, de facto, mas não por ele. E concluo. Como esse lápis, digo, gostava de não existir, como esse lápis. Ele continua a olhar-me da mesma forma e faz-me uma pergunta absurda Ah, então gostava de morrer, é isso? Deseja morrer? Constato, sem surpresa, que ele não percebeu nado do que eu lhe disse, mas como num orgasmo, ou como perante a explicação paciente de um professor, eu finjo que sim, que senti, que compreendi, ou que fui compreendida – neste caso. Certo, vamos tratar disso, eu vou ajudá-la, isso vai passar, diz o médico à paciente que sou eu.
Saio do consultório, há pessoas cá fora que me vêem sair. É uma mulher, sem uma expressão visível – notam –, quem sai, e caminha pelo corredor; mas adiante – o corredor é longo - já parece um homem de cabelos encaracolados negros, mais adiante – naquela zona as árvores do parque do hospital projectam algumas sombras – um velho cego (pela errância do percurso), mais além, quase a dobrar a esquina do corredor, já só é possível avistar-se uma fina linha, como a de um lápis. Coisa estranha, todas as pessoas que estavam sentadas na sala de espera improvisada do corredor do hospital tiveram a sensação de terem visto a mulher que saiu do consultório ser, mais à frente, outras pessoas e outras coisas. Falarão de tudo isso ao médico que com um olhar paciente e atento as ouvirá e fingirá perceber tudo o que dizem. Elas fingirão que foram compreendidas e abandonarão o consultório correndo o meu risco.
quando se finge acaba-se odiando aquilo em se tornou ao fugir do que se odiava ser. ou se esquece quem se é, ou se foge do que se é, ou se vivem memórias que não se têm.
se o Eu for muitos a responsabilidade é a dividir por todos:)
Ocorre-me que «se o Eu for muitos a responsabilidade é a dividir por todos»... é uma afirmação que também se aplica lindamente à nacionalização do BPN... :)
é como eu costumo gerir - se a isso se pode chamar gestão [irra que não deixamos o BPN] - a minha vida, apesar de saber que talvez me devesse estar a preparar para qualquer coisa. enfim, um dia isto, outro aquilo. incongruência para mim é oxigénio:)
E parece-me um bom modo de vida, mas, repara [lá terá de ser!], se trabalhasses no Banco de Portugal,[alegadamente] serias pago para ter esse modo de vida! Não era, digamos, agradável?
Este é um blogue de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência. Ou fruto da imaginação do(a) leitor(a) - o que é bom.