Por alguns segundos, o Dr. V. não ouve a mulher que tem à sua frente, mas a música que está a tocar no rádio que há anos ocupa a última prateleira de uma pequena mesa ao lado da sua secretária. Já é a segunda música, nesta manhã, que ele não consegue identificar durante os primeiros segundos e isso desagrada-lhe a ponto de o fazer franzir muito ligeiramente a sobrancelha.
É preciso perceber que o rádio está ali apenas para isso, para o Dr. V. exercitar a sua extraordinária capacidade de reconhecer uma música apenas pelos primeiros acordes. Aos pacientes, ouve-os no tempo restante, que é quase todo, mas é absolutamente necessário ouvir o início das músicas.
A mulher, porém, não se apercebe da contrariedade que fechou levemente a expressão do médico, absorvida que está no seu próprio mundo interior.
Dir-se-ia que os seus mundos interiores não se tocam, considera, vagarosamente, o Dr. V. Ela pensa obsessivamente em qualquer coisa que lhe aconteceu naquela manhã, mas que não consegue explicar; ele num CD que tem de procurar mal saia do consultório. Poderiam ficar toda a manhã ali, naquela situação, que os seus mundos nunca se tocariam, seriam realidades paralelas que só um puro acaso poderia fazer coincidir. Que tipo de acaso, ele não sabe. Poderiam descobrir que são, afinal, vizinhos, quando ele registasse a morada dela na receita, essa é uma hipótese. A partir dessa coincidência, poderiam começar a falar de si próprios, o que os fez ir morar para aquela zona da cidade ou qual o café que mais frequentam.
Assim que se apercebe do rumo dos seus pensamentos, o Dr. V. recolhe-os rapidamente e fixa, com um ar bondoso, a mulher que tem à sua frente. Este homem sabe há muito tempo que não há qualquer vantagem nesse encontro de mundos interiores, que caminham, como todos os outros, para a morte.
(cont.)