O Dr. Jorge V. é um homem cansado. Gostava de o poder descrever melhor, mas corria o risco de mentir. Ele num momento é uma coisa, no seguinte já é outra, estaria permanentemente no limiar da falha: quando o encontrasse, ele já não era o que eu tinha conseguido reter.
Enquanto ele observa a mulher que à sua frente olha fixamente o lápis sobre a mesa, nós observamo-lo a ele. Este ciclo de predadores e presas já o interessou de forma muito apaixonada; agora cansa-o como as demais coisas.
Foi assim com a música. Quem o tenha conhecido há vinte anos não acreditará que ele agora ouve música comercial na rádio e quer conhecer os êxitos do momento para vencer competições contra si próprio.
Foi assim também com a medicina. O tempo em que andava obstinadamente às voltas no seu quarto, entusiasmado com a resolução de um problema, não parece seu e essas voltas não pertencem ao passado do seu corpo.
O Dr. V. diz qualquer coisa à sua paciente mas fá-lo muito baixo. Faz-lhe uma pergunta.
Pensa, entretanto, que ela é bonita e que, estranhamente, não se sente atraído por ela.
Adivinha o início da música seguinte e pensa que aquela música nunca poderia ser cantada por esta mulher. E pensa, novamente, nas realidades paralelas. Ele, a paciente e a cantora, alinhados – três realidades que nunca se tocam por mais que se prolonguem no infinito. A matemática aplica-se à música, à medicina, mas não ao mundo interior, propõe, intimamente. Ele, a paciente e a cantora, a girar sobre si mesmos num espaço negro e silencioso. Se eles trocarem partes do corpo, entre si, enquanto giram nesse imenso céu nocturno - ele com uma perna da paciente, com um braço da cantora - continuam a ser quem são: médico, paciente e cantora? Se ele tomar o rosto da paciente, continua a ser o Dr. V. ou é uma mulher bonita? E se a paciente receber a voz da cantora, é a cantora?
(cont.)