O último doente já saíra há uma boa meia-hora quando o Dr. Jorge V. se levantou, vestiu o sobretudo e abandonou o consultório. Durante esse tempo, encolhido na cadeira, tentou combater sem grande êxito a infinita preguiça de se levantar, sair e ir à procura da música que queria.
Pensa nos pacientes que recebeu, mas mistura-os com muitas outras coisas. Os pensamentos desordenados são improdutivos, mas este homem da ciência tem sentido uma crescente dificuldade em ordená-los. Na verdade, pode-se afirmar que ele pensa, sobretudo, no que foi pensando enquanto recebia esses pacientes, de forma que, agora, já não os recorda, a eles, com a mesma clareza com que se recorda a si, durante essas consultas. Sabe as músicas que identificou e as que falhou; sabe que sentiu uma certa comunhão com o paciente das onze horas; sabe que no final da manhã as árvores que rodeiam o hospital projectaram umas sombras curiosas no rosto de uma mulher.
Sabe que, mais tarde, há-de estacionar em frente à sua casa e demorar outra meia-hora para sair.
Lembra-se, então, de fazer o que não sabe: telefonar à mulher a dar uma desculpa para regressar mais tarde a casa.
Dirige-se para o centro da cidade, sem um destino definido.
Como saber para onde vai, se nem sabe onde está? O Dr. Jorge V. é um homem que acredita que Deus seja um jogador de dados. Não se importa. Essa ideia, que o assustou bastante no início, dá-lhe agora um imenso alívio.
(cont.)