É preciso dizer que o Dr. V. é um bom médico e os pacientes consideram-no atencioso, bondoso até, e competente. Mesmo que muitas vezes lhes pareça alheado e distraído, a distracção não é do doente, mas do homem, como o professor se pode distrair do aluno e continuar centrado no erro que ele comete – costuma dizer – e tal parece-lhe perfeitamente justificável. Afinal, a ele sempre lhe interessara apenas o homem enquanto matéria significante.
Como ainda naquela manhã, quando perguntara a uma paciente se ela desejava morrer. Juraria que ela lho tinha dito, apenas porque a letra da música que ouvia naquele momento dizia essas palavras. As palavras estavam na letra da música e passaram, magicamente, para o movimento dos lábios feito pela mulher, onde se vieram encaixar com rigor, logo, de certa forma, ela disse-o.
Jorge V. passou o dia no centro da cidade, andando de um lado para o outro e sentando-se, ocasionalmente, nos cafés, perdido no seu mundo interior, perpendicular à realidade. Encontrou o álbum que procurava – Live in Tokyo; encontrou um ou dois conhecidos com quem falou amavelmente e em quem deixou a forte impressão de que é um homem bom e um médico competente, como eles próprios, aliás. Dir-se-ia que quem visse esses homens a conversar não os distinguiria, nenhum traço individual, nenhuma marca de carácter, os evidenciava – nem uns dos outros, nem do resto dos homens de toda a cidade.
Junto à noite, regressou a casa.
Fechado no seu escritório, o Dr. V. dedica-se, agora, à tarefa que diariamente o absorve há mais de quinze anos.
Reproduz no computador as filmagens que fez aos nove pacientes que recebeu nesse dia. Grandes planos dos rostos, quase sempre. Dos pequenos filmes, selecciona alguns pedaços – os bons, os que servem – e apaga os restantes. Como se estivesse numa operação, podemos dizer, a separar o membro saudável do menos são.
(cont.)