Depois, passa à fase seguinte. Selecciona, numa operação que demora algum tempo, as nove músicas que intimamente já escolheu e em cujas letras se encaixam, por alguns segundos, mais raramente por alguns minutos, partes do discurso de cada um dos pacientes.
O Dr. V. conhece tão bem o homem-matéria com significado que sabe perfeitamente o que dizer e fazer para que cada paciente diga as palavras de que ele precisa, quando não as diz espontaneamente. As palavras que se encaixarão numa determinada letra em que está a pensar, naquele preciso momento, durante a consulta. Não é difícil: todas as pessoas dizem as mesmas coisas e são terrivelmente previsíveis – costuma dizer. Quando necessário, o Dr. V. vicia um pouco o jogo, como já se viu: basta um ligeiro jeito na mão habituada para que o dado caia com a face desejada para cima.
Muito esporadicamente, acontece algo que lhe agrada de forma particular: alguém foge à letra em que ele pensara. Os lábios da presa fogem ao controlo do predador, devolvem-se ao seu legítimo proprietário e conduzem o médico para músicas diferentes daquelas em que ele pensara inicialmente.
Agora, o Dr. V. está a fazer correr, no computador que está à sua frente, toda a aplicação que vem construindo há anos e anos: mais de vinte mil rostos, que cantam, num playback casual, centenas de músicas.
Milhares de rostos a exprimir todos os sentimentos do mundo, um puzzle da humanidade e da música, um puzzle do homem-matéria com significado, um texto gigantesco de palavras que ele acomoda e faz funcionar.
A última contribuição é a da mulher que queria ser um lápis, mas eis que surge um desses agradáveis contratempos. No movimento dos seus lábios, não se encaixa, afinal, a música que supusera ser a mais adequada. Antes mesmo de ter tempo para se preocupar, porém, ocorre-lhe o óbvio: revê o excerto do filme e confirma que se encaixa perfeitamente o refrão da música que passou a tarde a assobiar: Someone to watch over me.
Definitivamente, as pessoas são mesmo muito previsíveis – conclui.